Estou aqui limpando livros para doar. Difícil me separar de alguns, principalmente aqueles com dedicatórias. Adoro comprar livros usados que já vêm com elas, fico imaginando quem deu e o porquê de quem ganhou passá-los pra frente… Encontro “Os grandes benfeitores da humanidade”: capa dura, lombada despedaçada, “desenhos” de traças nas primeiras páginas. Apesar da idade, 1942, não cheira a mofo ou poeira. Apesar dos traçados “traceiros”, leio. Acima da introdução numa bela letra: Edgard Teixeira, meu único tio materno.
O enredo começa instigante: num dia chuvoso, Leda e dois primos exploram a biblioteca da casa: um espaço enorme, centenas de livros, bustos de escritores. Cansados de percorrer tantos títulos, refestelam-se no sofá, relaxados. Eis que a estátua da moça sentada, um grande livro sobre os joelhos e uma pena comprida na mão direita, ganha vida e fala sobre heroísmo: “Superiores aos heróis que destroem são os que constroem”. Quem é a mulher? A dona História que vai mostrando às crianças os verdadeiros benfeitores da humanidade: cientistas, inventores, artistas e apóstolos. O livro tem 258 páginas e na última a palavra Fim em maiúsculas.
Engraçado essa coisa dos livros e filmes antigos terminarem com “The end”. Afinal, toda obra, pela nossa imaginação, pode ser continuada. A tal da “obra aberta”, explicada por Humberto Eco. Ou ainda, como defende Roland Barthes, no seu ensaio “A morte do autor”, quem significa e interpreta o conteúdo é o público leitor/espectador. Para ele, toda obra é independente, assim que chega às mãos de seus leitores. Então, o fim não existe? Se pensarmos nas fanfics – sequências da história original adaptadas ao gosto do fã da obra que não quer que ela termine -, não. O livro “Riobaldo e Macabéa”, da pontenovense Sandra Mafra Amora, que promove o encontro de dois personagens de obras diferentes, de Guimarães Rosa e Clarice Lispector, é um exemplo. A autora muda o triste destino de Macabéa de “A hora da estrela” recriando outra história.
Pensando ao vento: guardar livros não seria um fim para cada exemplar que vai se empoeirando nas prateleiras, falecendo fechados nas gavetas? Fora a Bíblia, o I Ching e a Constituição brasileira, qual outro fica na cabeceira para ser revisitado? Antes da internet, os dicionários, as enciclopédias …, mas falemos de literatura, quem consegue reler os livros preferidos? Ainda mais se convivemos com a mesma certeza angustiante da minha amiga Maria Inês: a impossibilidade de ler todos os livros do mundo em uma só vida! Então, para quê guardar? Como diz o poeta Antônio Cícero, “guardar uma coisa é ser por ela admirado”. E não é muito mais interessante compartilhar o que admiramos, emprestar o livro, passar pra frente? Minha amiga Renata Gesualdo empresta seus livros sem o menor apego. Sábado passado lhe devolvi dois que estavam comigo há anos! Na mesma hora, ela emprestou um deles para o amigo ao lado.
Desapegar, atualmente, é um hábito recomendado. Libera espaço, energia. Exercita a simplicidade e a generosidade. Já reparou, entretanto, que os jovens não guardam livros, nem discos nem fotos? No mundo digital, quando a memória enche, até mesmo na nuvem, deleta-se tudo sem o menor problema.
No mundo real, há bibliotecas enormes cheias de raridades. Algumas são lindas, como a Real Gabinete de Leitura (foto), no Rio de Janeiro, eleita pela revista Times a quinta mais bela do mundo.
Na vida cada vez mais virtual, não há nas casas bibliotecas, nem mesmo estantes de livros. Meu irmão, por exemplo, um senhor leitor, migrou para o digital. “- Quer ficar com algum livro aqui, João?”
“- Pra quê? Tenho mais de 800 no meu kindle.”
Eu já pensei em ter um desses aparelhos, até o efeito folhear eles têm, entretanto vai faltar o cheiro, virar a página de verdade… “Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la”, se assim fala o poeta Cícero, manter os livros à vista enfeita a alma, decora a casa e também aparenta erudição.
Lembra quando um cenário de biblioteca caiu sobre o desembargador numa sessão do Tribunal de Justiça do Amazonas? Ao contrário dos fundos virtuais usados nas reuniões à distância, à época da pandemia, o magistrado tinha um painel de madeira imitando estantes de livros. E o que era pra aparentar sapiência virou piada.
Nunca tive uma biblioteca, no máximo algumas estantes. A quantidade de livros foi diminuindo com minhas mudanças. Suas caixas são as mais pesadas. Contudo alguns me acompanham, especialmente os de poesia.
Doo ou guardo estes 80 livros? Vou me dispor. Estão longe, já os li. Aliás, se você quiser se desprender dos seus, me avisa que levo pro sebo da minha amiga Josi.