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Ilustradora de nossa região presente na Bienal do Livro RJ 2025

Na Bienal do Livro, haverá lançamento da obra “Uma vida bordada em palavras”, ilustrada por Luísa Viveiros, artista radicada em Ponte Nova.
InícioCIDADELaene ComVida: ‘Olhos no meu salvador. Surpresa: mas, logo ele?’

Laene ComVida: ‘Olhos no meu salvador. Surpresa: mas, logo ele?’

 Pensara que o sucedido comigo havia sido um exemplo do “paguei a língua”, ditado em que se constata não ser recomendável ter certezas absolutas: disse que não ia e fui; bebi da água que jurava não beber.

Pensando melhor, o ocorrido me lembra o filme “Crash no Limite” (Sandra Bullock queria tanto fazer que pagou sua passagem até o set de filmagem), especificamente as cenas em que uma mesma personagem, um policial, se transforma de acordo com determinados contextos. Numa passagem, ele abusa de uma mulher e em outra aparece para salvar sua vida.

Não bastasse o filtro que não gela e a água que não abre, tenho que sair voando pra levar meu notebook descarregado ao conserto. Preciso do arquivo dentro dele para toda a programação desta sexta.

Atarantada adentro à loja, que só abre sua porta automática após eu retirar o capacete – claro que o fecho dá uma emperrada -, que deposito no balcão. O técnico menino me atende numa calma de bicho-preguiça, sorriso congelado e corpo em câmera lenta. Quisera ter nele um botão para acelerá-lo a duas vezes como fazemos nos áudios do celular. A cada movimento no meu computador, me explica como se eu fosse uma velhota gagá (será preciso pintar meus brancos? Só se for de azul). Separando as sílabas de cada palavra e falando num tom acima dos meus ouvidos (acha que sou surda?), ele termina sua palestra sobre as possíveis causas do meu computer não ligar.

 Passo pela porta, expiro toda a ansiedade que guardava lá dentro e chispo morro abaixo. Ainda há tempo de não me atrasar. Inspiro o vento e lembro que esqueci de algo. Uma moto passa buzinando, o motociclista aponta para a cabeça. O capacete! No meio da ladeira, vou parando, a roda virada para o meio-fio. Como frear, descer, continuar freando, pegar o capacete no baú…

“- Quer ajuda?” – a voz fina de um homem magro me socorre. Aflita, aceito.

“- O capacete ficou na loja” – olhos nos olhos do meu salvador. Surpresa: mas, logo ele?

“- Vai lá, professora, espero.” O dito cujo é aquele que só de encontrar me arrepiava a cabeça. Um professor que em situações de liderança optava pelo mercado, e não pelo professorado. Numa fala mansa, achava que nos convencia de ser imprescindível o congelamento dos salários (os nossos). E olha eu hoje vendo o homem com outros olhos, precisando dele! 

Subo correndo a ladeira, retomo o protetor de cabeça, tropeçando em funcionários surpresos:

“- A senhora saiu sem capacete?” – o jovem técnico me olha agora quase um fã.

Na descida, me apresso sem acelerar (um tombo é o que faltava!)

“- Muiiiito obrigada, professor.” Ansiosa, mas sem susto, concentro-me no equilíbrio. Equilibrando livros, celular e chaves, ele volta a seu caminho, calçada acima.

Nessas horas dá pra crer em destino. Acostumados à moral da história, pensamos que a vida é encaixada. Temos um lugar marcado. Peças de um gigantesco quebra-cabeças do Bem.

Meu pai acreditava em “Maktub”. Tudo está escrito, tinha que acontecer, a hora de morrer inclusive. Às vezes eu penso assim, principalmente no que diz respeito ao nosso fim. Isso justifica a ilogicidade dos passamentos. Tão diferentes em circunstâncias iguais. Tão iguais em variados indivíduos.

Reencontrar aquele professor que me dá (dava?) ranço e receber, verdadeiramente agradecida, sua generosidade me faz um ser melhor? O momento foi uma prova de que “a ocasião faz o ladrão”, ou melhor, de que a oportunidade faz o acontecido? Ou seja, é a conjuntura que gera o lance. Pra pior ou pra melhor.

Sei não. Tem pessoas, eu penso, que nunca roubarão. Só se for pra matar a fome.  Ah, mas eu conheço gente que “pega” uma mudinha (nem é flor comestível) do jardim alheio (“quem, eu?”).  Aí está a dona ocasião.

De qualquer modo, é interessante o que me aconteceu. Parece que me deixou leve, sem amargor. Ranço é azedume, rastro pra sempre na boca, se a gente não adoçar. Nesse caso, foi a vida que abrandou.

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