Pensara que o sucedido comigo havia sido um exemplo do “paguei a língua”, ditado em que se constata não ser recomendável ter certezas absolutas: disse que não ia e fui; bebi da água que jurava não beber.
Pensando melhor, o ocorrido me lembra o filme “Crash no Limite” (Sandra Bullock queria tanto fazer que pagou sua passagem até o set de filmagem), especificamente as cenas em que uma mesma personagem, um policial, se transforma de acordo com determinados contextos. Numa passagem, ele abusa de uma mulher e em outra aparece para salvar sua vida.
Não bastasse o filtro que não gela e a água que não abre, tenho que sair voando pra levar meu notebook descarregado ao conserto. Preciso do arquivo dentro dele para toda a programação desta sexta.
Atarantada adentro à loja, que só abre sua porta automática após eu retirar o capacete – claro que o fecho dá uma emperrada -, que deposito no balcão. O técnico menino me atende numa calma de bicho-preguiça, sorriso congelado e corpo em câmera lenta. Quisera ter nele um botão para acelerá-lo a duas vezes como fazemos nos áudios do celular. A cada movimento no meu computador, me explica como se eu fosse uma velhota gagá (será preciso pintar meus brancos? Só se for de azul). Separando as sílabas de cada palavra e falando num tom acima dos meus ouvidos (acha que sou surda?), ele termina sua palestra sobre as possíveis causas do meu computer não ligar.
Passo pela porta, expiro toda a ansiedade que guardava lá dentro e chispo morro abaixo. Ainda há tempo de não me atrasar. Inspiro o vento e lembro que esqueci de algo. Uma moto passa buzinando, o motociclista aponta para a cabeça. O capacete! No meio da ladeira, vou parando, a roda virada para o meio-fio. Como frear, descer, continuar freando, pegar o capacete no baú…
“- Quer ajuda?” – a voz fina de um homem magro me socorre. Aflita, aceito.
“- O capacete ficou na loja” – olhos nos olhos do meu salvador. Surpresa: mas, logo ele?
“- Vai lá, professora, espero.” O dito cujo é aquele que só de encontrar me arrepiava a cabeça. Um professor que em situações de liderança optava pelo mercado, e não pelo professorado. Numa fala mansa, achava que nos convencia de ser imprescindível o congelamento dos salários (os nossos). E olha eu hoje vendo o homem com outros olhos, precisando dele!
Subo correndo a ladeira, retomo o protetor de cabeça, tropeçando em funcionários surpresos:
“- A senhora saiu sem capacete?” – o jovem técnico me olha agora quase um fã.
Na descida, me apresso sem acelerar (um tombo é o que faltava!)
“- Muiiiito obrigada, professor.” Ansiosa, mas sem susto, concentro-me no equilíbrio. Equilibrando livros, celular e chaves, ele volta a seu caminho, calçada acima.
Nessas horas dá pra crer em destino. Acostumados à moral da história, pensamos que a vida é encaixada. Temos um lugar marcado. Peças de um gigantesco quebra-cabeças do Bem.
Meu pai acreditava em “Maktub”. Tudo está escrito, tinha que acontecer, a hora de morrer inclusive. Às vezes eu penso assim, principalmente no que diz respeito ao nosso fim. Isso justifica a ilogicidade dos passamentos. Tão diferentes em circunstâncias iguais. Tão iguais em variados indivíduos.
Reencontrar aquele professor que me dá (dava?) ranço e receber, verdadeiramente agradecida, sua generosidade me faz um ser melhor? O momento foi uma prova de que “a ocasião faz o ladrão”, ou melhor, de que a oportunidade faz o acontecido? Ou seja, é a conjuntura que gera o lance. Pra pior ou pra melhor.
Sei não. Tem pessoas, eu penso, que nunca roubarão. Só se for pra matar a fome. Ah, mas eu conheço gente que “pega” uma mudinha (nem é flor comestível) do jardim alheio (“quem, eu?”). Aí está a dona ocasião.
De qualquer modo, é interessante o que me aconteceu. Parece que me deixou leve, sem amargor. Ranço é azedume, rastro pra sempre na boca, se a gente não adoçar. Nesse caso, foi a vida que abrandou.