“Estão brincando com uma… bengala de cego?! Não, a menina não enxerga mesmo”, constato admirada com tanta alegria. Após um tempo, a animação se repete na UFV. “É uma reta, vira um pouco à direita, volta, tem uma rotatória”: minha sobrinha Maíra vai orientando a amiga Camila, que nem pensa quando lhe pergunto se quer dirigir meu carro.
Coragem (agir com o coração) é o que guia Camila. Durante todo o Ensino Médio em Ponte Nova, ela enfrenta a degeneração da retina, o luto pela perda da visão e depois o processo de se sentir uma pessoa menos capaz.
Por querer cursar Psicologia, ela escolhe a Universidade Federal Fluminense (UFF) e chega ao Rio de Janeiro, seis meses antes do início das aulas, ao Instituto Benjamin Constant (instituição de ensino para deficientes visuais) para aprender braile, adaptar-se à cidade, virar-se com a bengala.
Não admiro @camila_araujo_alves só pelas conquistas (drª em Psicologia, consultora em Diversidade e Inclusão, psicoterapeuta reichiana). O que mais me afeta é que ela se joga, provoca, propõe mergulhos e pensares.
Apesar de reconhecer a importância histórica do termo PCD (pessoa com deficiência), ela prefere se apresentar como uma mulher cega, usuária de cão-guia (sobre a fundamental relação, assista à segunda temporada de Amor de Bicho).
“- Essa sigla nos abrevia. De algum ponto, deficiência é qualquer coisa. Nossa luta é pelo nome completo, nossas múltiplas subjetividades e nosso poder de escolha.” Escolher se denominar cega é ressignificar um termo de pena e piada para fortalecimento e embate.
Na foto, audiodescrição – Camila, uma mulher branca de cabelos compridos e ondulados, veste um top azul estampado, usa óculos escuros; está sentada sobre a grama, sorri abraçada ao pescoço e de rosto colado ao de um cão preto; ao fundo desfocado, um gramado e árvores.
“- Muita gente usa o termo deficiência para não falar, não vamos lidar. Prefiro que a pessoa use a palavra do que ficar cheia de receio.”
Nossa sociedade vê as pessoas cegas como incapazes, algo lhes falta.
“- Fica parecendo que o problema da deficiência é puramente a deficiência. Quando eu me apresento firmemente como uma mulher cega e muita gente fica sem saber como lidar, fica muito evidente onde fica o problema também, né?”
Ter uma deficiência não significa ser deficiente. “Como não se espera nada das pessoas com deficiência, quando a gente faz uma coisa que nem é grande, vira um escândalo.” Nem vítima ou heroína é o melhor dos mundos pra Camila.
Há cinco anos, um estúdio de pilates não a aceitou porque ela poderia machucar-se. Desde então, pratica crossfit em outro lugar. “A acessibilidade é uma construção múltipla, uma prática que se faz no encontro com o outro.” A negação do acesso a uma PCD não é uma questão de cuidado, mas um obstáculo real. Pode ser um tipo de preconceito: capacitismo: “Ah… ela não é capaz, não consegue…”
Para evitar conteúdo capacitista, Camila foi consultora (e também atriz) na novela Todas as Flores. Eliminou falas da personagem cega do tipo “você dança tão bem sem ver”. O que demonstra um desconhecimento geral. Dançar tem a ver com ouvir.
Consultorias, palestras e o trabalho da Camila têm sido referência sobre acessibilidade e deficiência. Ver uma cega trabalhando é um choque no capacitismo. O estágio que ela fez como guia no Museu de Arte Contemporânea foi uma demonstração de que ter é também dar acesso.
“- A gente recebia muitas pessoas cegas, surdas, autistas. O tempo em que eu também trabalhei com pessoas sem deficiência foi muito interessante para que elas pudessem entrar em contato com uma pessoa com deficiência, que é uma coisa que quase ninguém teve na vida.”
Para além de vivenciar sua cegueira, Camila pensa, estuda, trabalha e se posiciona.
“- Venho aprendendo de muitos anos pra cá, teoricamente, filosoficamente e esteticamente sobre a deficiência com a minha entrada na UFF, onde há um movimento forte na área da deficiência.”
Sua experiência no Centro Cultural Banco de Brasil (CCBB) é o campo da sua dissertação e do seu livro “E se Experimentássemos Mais?” Ao provocar reflexões, Camila ultrapassa o conceito de acessibilidade como inclusão das pessoas com deficiência: “Acessibilidade efetiva é a que transforme todos os envolvidos (isso me lembra a artista Zélia Duncan cantando uma música também em libras e comentando como isso lhe impactou), e não algo que depois de criado fica pronto para sempre.”
Filósofa das que sacodem a mesmice, pondo fogo na vida morna, imaginem só o que ela sorrindo diz: – “A esperança é o truque do tempo para não vivermos.” – “Você consegue viver sem esperar, meu Deus do Céu (riso)?” – “Claro que não! (risada), o que consigo é prestar atenção, indo por esse caminho.”
Compreendo a dimensão de esperar da Camila como algo passivo, sem a consciência do mover-se no presente, inteira.
– “O que está te movendo agora?” – “Estou aprendendo a viajar e eu estou amando isso.
Ah!… Camila, você é, isso sim, uma viagem, das boas.
Veja, leia, escute Camila: – ‘Todas as Flores’; ‘Pra todos verem’; ‘Falas de Acesso’ (Globoplay); ‘Amor de Bicho’ (Youtube); ‘E se Experimentássemos Mais?’ (Editora Appris, Amazon…); e ‘Lutos’ (Editora Summus).