O conteúdo desta matéria é exclusivo para os assinantes.

Convidamos você a assinar a FOLHA: assim, você terá acesso ilimitado ao site. E ainda pode receber as edições impressas semanais!

Já sou assinante!

― Publicidade ―

Lula libera máquinas agrícolas para quatro cidades da região

Como parte do Promaq, a União anunciou moto niveladora para Oratórios e retroescavadeiras pata Canaã, Urucânia e Alvinópolis.
InícioCIDADE'Minha vida é assim'

‘Minha vida é assim’

 
“É… este vestido que Renata trouxe pra eu experimentar, gostei! Deixa eu botar pra ficar bonitinha pra Laeninha. Ela vem amanhã, minha filha. Amizade igual tinham vocês… Todo dia fico aqui olhando pra esse quadro que a Maçonaria mandou fazer pra mim: Margarida, suas colegas estão todas aí! Jaqueline eu vi outro dia, já tem filha médica… E Beth Trivelatto… Foi um dia lá em casa, eu tirando das forminhas uma quantidade de empada, pegou no trem quente, soltou pro chão, foi empada pra tudo quanto é lado. Ela quase morreu! (risadas). Naquele prédio eu fiz muita coisa pra fora… Você adorava aquele Guarapiranga, Nossa Senhora!
 
Intuo que Maria da Glória Gesualdo Gomes [Dona Glorinha] tem despistado a saudade conversando com a filha e nos contando casos que ela relembra e repete numa alegria às avessas. Ela não derrama mais o desespero do choro. Veemente, reforça a facada da morte (“A falta de Margarida é uma coisa assim horrorosa”), mas também não foge da vida. Enquanto me recebe na sua sala espaçosa e confortável, a mãe da minha querida amiga Gaída vai jorrando sua força e fé. 
 
Como pode alguém tão marcada pela morte ser tão fervorosa da vida?  Além dos momentos finais de pessoas queridas, dona Glorinha sempre esteve atenta à dita cuja: “Lembra da mortandade no dia daquela festa? Eu sou extremamente preocupada com essas coisas, desastre… passa um maluco, dá um tiro… Ou some, mata.” Intensa, até hoje ela se acalora com os possíveis perigos da existência. “Essa daqui outro dia estava naquele lugar que dá tiro!” Acho graça do seu jeito italianado. Renata ri: “Dona Glorinha sendo dona Glorinha”.
 
Seu tom de empolgação ao narrar os perrengues realmente gera um clima meio engraçado na sala. Mesmo quando conta sobre os 12 dias que passou no hospital tratando do vírus da Covid: “Fui para o CTI. Aqui, eu quase morri naquele lugar com o tal de Covid, Meniiiina!
 
Era vidro pra tudo que é lado. Meu cabelo caiu todo, achei que ia ficar careca, ele voltou anelado, nunca foi anelado. Pode rir!” Ou comenta sobre quem nega a gravidade da doença, abaixando a voz: “Tem gente que diz: não tem nada. PixiiIIIii, vai, diabo, pra ver, isso é um trator!” Ou ainda desabafa sua revolta diante da postura errática de certo médico: “Elas não gostam que eu falo. Eu tive vontade de ir atrás dele, sacolejar ele atéééé. Você sabe como eu sou, não sabe?” 
 
Se sei? De criança à adolescência, era dona Glorinha apontar na esquina pra gente tremer, mesmo sem ter feito nada. Medo e diversão. Sacolejo e aconchego. Ela cuidava de todo mundo. “Eu melhorei muito, minha filha, não xingo mais, fiz um trabalho com minha cabeça de não falar alto, agora o povo fica na ‘gritaiada’ e ninguém ouve minha voz.”
 
“Ô gente, fala com ele para apertar a campainha.” A falta de interfone tira dona Glorinha do sério. Briga em família e excesso de bebida também lhe incomodam.  Mas é só mencionar as netas para abrir um sorrisão: “São muito engraçadinhas, muito lindas, não deram trabalho de jeito algum”. 
 
 Dia de feira, 05:00: “Acordei, vou lá dentro, faço ou não um café? Vou deitar mais um bocadinho… Sete horas, já passo o café. Vou lá pro meu terraço arrumar pimentão, picar o frango, cortando assim na medida, bonitinho, não vai um pra lá outro pra cá não.
 
Estrogonofe, arroz: vai tudo separado. Agora deixo a cozinha limpa. A feira me ocupa a tarde toda”. 
 
Dia sem feira: “Deixa ver se a santa receita me agrada. Se tiver goiaba, faço goiabada. Ou posso fazer um doce de mamão, bananada…”
 
É cozinhando que dona Glorinha se distrai e toca a vida. Toda semana tem encomenda: pé de moleque, roscas, ravióli. A famosa feijoada da Apae foi ela quem pilotou por 30 anos.  Na festa de São Pedro ela entrava às quatro da manhã e saía às 10 da noite: “Falei com uma amiga que nunca tinha rezado pro santo e ela respondeu que ele me fecharia a porta do céu, mas ele sabe que ajudei todo mundo, minha vida foi só de trabalho, ajudar, ajudar e sou feliz com isto.”
 
Mesmo sem sair de casa, dona Glorinha segue ajudando e rezando. Às missas ela assiste pela TV. No primeiro ano da pandemia, tricotou mais de cem cachecóis para o Asilo. “Minha vida é assim, ajudando um, fazendo outra coisa para outro”.  
 
Dona Glorinha, quase aos 80 anos, já acudiu, apoiou, socorreu e agradou muita gente. Seu jeito bravo na verdade é uma prova de amor ao próximo. “Vai tomar banho, Renata; Cristina, você ainda não arrumou a cama!; De noite não, Laeninha, pode parar, não vai pegar estrada!” 
 
Desço as escadas com a rosca que ela me deu – “Ô minha filha, muito obrigada vai com Deus!”- Entro no carro. Dona Glorinha, São Pedro nem é doido de não abrir, vai ter muita gente lá escancarando a porta.
error: Conteúdo Protegido