
Enquanto minha amiga Dri ia todos os anos à praia, lá em casa não tinha isso. Claro que eu desejava. Meu pai vendia as férias. A gente não viajava. Porém um dia ele contratou o motorista Téia que nos levou – eu e minha mãe – à Guarapari. Como sempre, acordei cedo enjoada para a viagem. Era o fígado, o que descobri muitos anos depois. Um comprimidinho de Plasil não impediu a parada no acostamento para vomitar. “Isso, enfia o dedo na garganta pra sair tudo o que está te fazendo mal. Sabia que os cavalos não conseguem vomitar?” Essa era minha mãe. Do seu jeito totalmente fora da caixinha, ela tinha jeito pra tudo. Levara uma matula daquelas: maçã, empadinha gelada (adoro!) de frango, biscoito água e sal, biscoito polvilho e, o que não podia faltar, balinhas de hortelã! Pela estrada, ela ia me mostrando as coisas, a pedra azul, o penacho dos capins, as samambaias nos barrancos, as casas das beiradas… Pena que, quando eu nasci, meu pai já havia se aposentado do Banco de Minas e pararam as mudanças na Rural azul.
Passado o mal-estar, deitada no colo materno eu curtia a viagem. Paramos também para ir ao banheiro, em um restaurante cuja placa era uma letra barriguda (restaurante Barrigão?). “Não assenta na privada, vou forrar o assento com papel higiênico.”

Para mim a viagem durou demais, acho que o Téia nem chegava ao limite de 80km, obrigatório em 1971. “Tá chegando, falta quanto tempo? Eu era a criança de 11 anos levada pela mãe para conhecer o mar. “Aí, filha, veja o mar!” (foto)
Por cima da ponte em frente ao posto Tigrão, há 44 anos eu não achei graça naquela lagoa grande sob a chuva em Guarapari. A tarde estava fria, nada de praia. Fomos direto para a casa na praia do Morro, compartilhada com os vizinhos Seu Geraldo, Bebé e as filhas, Daniela e Bethânia. Até hoje, vejo na minha cabeça Dani, “piquitita”, com quatro anos, de cachinhos curtos segurando uma boia de plástico em pé na areia: meu dengo. Pode ser que a imagem seja uma foto: à época eu fotograva tudo e principalmente a menininha.
Os dias seguiram chuvosos, friozinho de litoral. Saíamos para tomar sorvete, comer misto quente. Argh, vômitos, de novo. E febre: infecção gastrointestinal. Injeção de Plasil. Praia só no dia seguinte.
A manhã chegara mormaçando. Queria ir à praia, mas premeditava o remorso de dizer à minha mãe que o mar não era aquilo tudo. Até chegar à praia do Morro e me embasbacar. Paixão à segunda vista. Amor pra sempre. De cara, não me liguei à criançada solta, ao castelo iniciado na areia. Só olhava, admirava, me impressionava.
As cicatrizes dos furúnculos nas coxas da minha mãe pareciam marcas maiores de vacina BCG. De maiô azul marinho, debaixo do guarda-sol, ela deliciava-se com as ostras. Sorveu um balde inteiro. Ostras, eu acho, era o segundo prato predileto dela, seguido por feijão pagão e nhoque (o primeiro da vida inteira foi café com pão e manteiga). Dava gosto de ver, mas não a ponto de experimentar aquela gosma com limão que escorregava goela adentro.
Não me lembro da viagem de volta. Inesquecíveis são o cheiro do álcool após a injeção e alguns recortes de cenas: minha mãe de lenço na cabeça, bolsa vermelha no ombro, mão na cintura e blusa branca cavada da boutique de dona Judith; eu e Bethânia de saia e bata ciganinhas dependuradas na varanda… Não sei se foi a primeira vez da minha mãe.
Dois ou três anos depois, meu pai conheceu o mar, insisti com ele. Fomos à praia. Eu, meu namorado Dalton, minha mãe, tia Lucinha e o filho Eduardo, de Viação Útil, um ônibus bate-lata a noite toda, de BH a Cabo Frio.
Meu pai chegara para o fim de semana. Sem camisa, de short, virado em menino, dava risada, sentado sobre a prancha de isopor, na areia, logo após a arrebentação. Um corpo forte, à vontade, sem vergonha, à beira mar. Brincava e ria.
Quisera ter tido outras férias viajantes com seu João e dona Laene. Sei que, quando se casaram, a lua de mel dos sonhos era uma viagem de sidecar. Mais tarde, na minha infância, se ganhassem na loteria, comprariam um trailer (hoje, motorhome). Tinham espírito viageiro. Eu também.
Para mim, encontrar o mar é necessidade. Sem ele, vai faltando um pedaço. Sobrevivo na gambiarra. Mergulho na banheira, demoro no chuveiro. Puro improviso. Vou ficando incompleta. Feito flor com pouca rega. Pomar sem NPK.
Na sua presença, não me faz falta o sol. Gosto de parar os olhos nele, respirar seu ar, escutar. Em dias nublados, mergulho se não tiver gelado (por isso amo as águas da Ilha Grande e de Arraial do Cabo). À noite, não sinto medo. Já me banhei no mar de Araçatiba pontilhado de luz pela alga noctluca: mágico.
Sagrado e necessário, todo ser humano deveria ter pleno acesso ao mar. Previsto na Constituição: direito à saúde, educação, moradia… e ao mar. Há tempos, tenho planos de morar lá. Que não demore, que seja antes dele virar sertão. Mar é vida. Vida sem mar é morte.