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Tendo intermediação da Câmara Municipal, ao fim das discussões com o Sindicato dos Servidores Públicos Municipais houve um consenso.
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Laene ComVida: ‘A procrastinação do prazer’

 É sempre o último ônibus do domingo de volta. De novo, as janelas fechadas, os vidros embaçados (seria tão saudável se eu pedisse para abrir). Viajamos em pé até Vau-Açu. Na mochila, a goiabada cascão, o queijo do seu Nélio e as roupas lavadas. A mesma vontade de não ir fica insuportável quando o abafado do ar cheira a manga. Enjoo. Depois do trilho do trem, assento, escancaro as cortinas desbotadas e meto a cabeça na noite pra respirar. Puxo o ar com força e despisto o choro. Tenho quatorze anos e não gosto de deixar minha cidade pra trás.  Em Teixeiras desce o saco de mangas e entram mais estudantes. Lotação esgotada. Fecho os olhos, nauseio de novo. Tento dormir. As frutas deixaram um rastro enjoativo.
 
Vem daí, acho, a razão de eu sobreviver meio século (!) sem comer manga Ubá. Pelo menos distribuí pela vida essa desculpa pra não me lambuzar de amarelo e catar fiapo no sorriso. Apesar da explicação afetiva, a aversão era inconsciente. Na infância, passara pela fruta sem salivar. Na adolescência “Da manga rosa quero o doce e o sumo” cantei da boca pra fora. Um pouco mais tarde, provara lascas do pomo tropical em saladas: sem paixão. Numa tardinha em Lagoa Santa, por insistência, experimentei manga verde com sal (“Você vai amar!”): não amei.
 
 Não sei se por pudor de me enlambuzar ou preguiça de limpar, a tentação da manga não me atiçara. Dessa forma, não aguardo o tempo delas. Passo sem parar por anos pela fileira de árvores na estrada onde pessoas em cima do teto dos carros tentam alcançar as maduras. Curiosa que eu sou, a fruta de origem indiana nunca me instigara.
 
Mas deu que eu vim morar a vinte passos de uma frondosa mangueira. De uns dias pra cá, ela tem nos atirado frutas. Pelo dia e à noite, batem no telhado do quiosque antes de cair: susto e alegria. Desde então nossa rotina tem sido tomada por elas. “Caiu mais uma, ouviu?”, minha sogra está ligada. “Vou congelar a polpa”, minha companheira promete. Comemos couve fininha com pedaços do fruto doce, tomamos suco.  Toda manhã, por volta das sete, escuto Isabella e Ângela caçando e chupando as caídas no jardim. As meio comidas ou amassadas a gente descasca para os passarinhos (o que tem aparecido de saíra, sanhaçu, cambacica, sabiá…). Tenho degustado, com-por-ta-da-men-te (faca e garfo), mangas como nunca. Até o último sábado.
 
O céu está de estalar de azul e o sol de estourar pipoca no pé do milho verde. “Deixa eu molhar aquelas mudas que eu trouxe de Juiz de Fora. Nessa lua não dá pra plantar”. Sigo pelas pedras de São Tomé, paro pra arrancar as espigas de flor do manjericão (assim eles duram mais), podo um pouco os coléus (estão invadindo o caminho) e antes de chegar ao quiosque… pá! Despenca no chão. Pá! Tomba ao lado. Pá! Rola na grama. Quicam na telha fazendo a tabela bem chuá pra mim. Cato as três. Estão com caldinho, firmes e pintadas (aprendi na semana passada). Lavo uma no chuveirão e me inicio no ritual: de cima pra baixo vou arrancando com os dentes a casca em tiras delicadamente. Caio de boca. A mordida traz um cheiro bom. Escorre na mão, respinga na camiseta, entorna dos lábios. Delícia.
 
 Quem explica a demora da manga Ubá na minha vida? Todo mundo adorava, era pra eu ser do contra? Há alguém que desgoste dela? Prefiro acreditar, como meu pai, que tudo tem hora. Todavia procrastinar o prazer (e eu que achava que adiávamos somente as obrigações…) da polpa “manguense” in natura é um pecado! Aliás, “essa fruta é pra se comer de joelhos”, como dizia minha amiga Beth Seixas.
 
Toda a adoração que presenciei devotada à manga, eu transferi para a eugênia (só em Ponte Nova a chamam assim), conhecida por jambo, do Colégio Dom Helvécio e da Escola Auxiliadora. Essa, entretanto, por mais roxamente apetitosa, não chega perto da suculência daquela. Se as eugênias eram salesianas, a manga (ubá) é divina. Deus não me deixe mais adiar coisa boa!
 
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