
A chuva faz tremer os cachorros e quem já enfrentou enchentes. Difícil encontrar alguém que não tenha medo de raios e trovões. Quando criança, meu pai me levava pra janela para ver a enxurrada e admirar os clarões. Às vezes saíamos pra brincar na chuva, às vezes queimávamos capim santo.
Hoje ela não me cai bem se vem forte. Chove na cozinha e meu coração encharca-se de ansiedade. Não tem mais beleza. Só medo do dia virar noite, da luz ir embora. Se antes brincávamos de sombras com velas, hoje as acendemos pra rezar.
Quando a araucária passava dentro de casa, aqui o medo era pavor. Contávamos os minutos pra tempestade passar.
Os mundos à beira de rios são belos e perigosos. Os leitos estão sendo retomados. A força da natureza demora a revidar, mas tem respondido (bem mal) aos desmates, queimadas, acimentados e outros ataques humanos.
Há tempos que de nossa relação com a mãe-terra não brota o respeito, dá é receio. Gaia cansou-se da gente.
Em dezembro, na minha infância, os trovões eram os anjos arrastando os presentes pra serem lavados pro Natal. De uns tempos pra cá, ressoam a raiva dos deuses contra a falta de cuidado dos homens. As águas do céu têm-me metido medo.
Há, entretanto, aquela mulher que dança na chuva e a cada relâmpago-flash faz pose para a foto. Ela não tem medo de nada. “Ainda não é o fim”, ela diz, enquanto solta os cabelos : “Lá vem ele, amo o vento.”
Basta dezembrar pra ela surgir rindo nas esquinas, às vezes de branco ou toda de vermelho. Num 23 de dezembro me pediu carona por volta das dez da noite, no trevo próximo a Ponte Nova. Confesso que me assustei, aquela mulher de vermelho da cabeça aos pés. Entrou no meu Fusca, agradecendo e dizendo pra eu ficar calma que era de paz. Em plena véspera de Natal, até que a mulher vermelha combinou com meu Fusca verde. Chegando à cidade, desceu na rua escura da Rodoviária Velha:
“- Que bom, a festa ainda não começou.” Fechou a porta do carro e eu disparei: “Festa nesse breu? Meu Deus!”
Não sei de onde ela é. É um mistério ela surgir apenas em dezembro, mais pro final do ano, quando inevitavelmente pensamos no que virá, no que faltou, no que faremos. Muito estranho, ela amar banho de chuva, viver arrumada e ler meus pensamentos.
Ontem, o céu ficou preto às cinco da tarde, vinha pra casa a mil por hora pra não enfrentar o temporal e quem me chamou no meio do caminho? Ela! Curiosa, parei pra conversar:
“- Vai deixar esse vestido lindo tomar chuva?”
“- Tô só esperando ela cair, hoje é dia de dançar.”
“- Por que a senhora está sempre de roupa de festa?”
“- A gente tem que estar pronta pro melhor”, me encarou com seus olhos verdes.
“- Por que só te encontro no fim de ano?”
“- É o meu tempo de sorte, quando as pessoas gostam e precisam me encontrar”, rodopia ao meu redor.
Mesmo de vestido longo, colares e brincos, salto alto… nunca está de maquiagem. As rugas em volta dos olhos denunciam a dona de infinitos sorrisos. A boca, sem batom, é rosa clara e as bochechas são calmas de quem não precisa de tensão pra viver.
“- Espero a vida de frente. Tranquila, a planta que você trouxe da casa da sua mãe vai se molhar.” Ela me tira a paúra e me faz esperar o chuvaréu com alegria: com chuva as mudas pegam. Quem é essa mulher adivinhadora de pensamentos, dançarina de chuvas, acalmadora de temores?
“- Qual é o seu nome?”
“- Não sabe? Quando você receia, eu apareço. Do que mais a gente precisa no final do ano? Muito prazer, eu me chamo Esperança!”
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